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Richarlison fala à ESPN como psicóloga salvou, literalmente, sua vida e se emociona: 'Só queria ver besteira'

Foi uma noite diferente. Rara. Única. Emocionante.

Quarta-feira, 13 de março de 2024, 4°C, friozinho daqueles no Norte de Londres.

Frio também na barriga. Afinal, não é todo dia que você bate à porta do camisa 9 da seleção brasileira na última Copa do Mundo. Como Richarlison vai falar com a gente? Como a gente vai falar com ele?

A tensão desapareceu em um instante. Foi com enorme carinho e um sorriso escancarado que o Pombo abriu a porta de seu ninho para a equipe da ESPN.

Vem aí os documentários "Richarlison, o Pombo é Gente", e "Casemiro, o Pai de Todos", produções originais ESPN, disponíveis também no Star+.


A simplicidade de Charlinho

"Fiquei sabendo que vocês vieram direto do Brasil para cá, minha prima fez um café. É para comer tudo, a galera tá meio fit aqui em casa agora", disse, nos convidando para entrar.

Nada da típica culinária local. Aliás, o idioma não é mais tão intimidador. Como está o inglês, Richarlison? "Tá very good, né?". Não deu para segurar o riso.

A mesa farta tinha cara de casa de vó: pão de queijo, coxinha, cuscuz, ovos mexidos, bolacha, pães, manteiga, geleia, presunto, queijo, água, suco de laranja, café. O Pombo é Gente. Guarde essa frase.

Enquanto arrumávamos as câmeras, Richarlison falava da vida como se estivesse cercado por velhos conhecidos.

Mostrou até o celular, verdadeiro baú repleto de tesouros. Vídeos de gols e dribles, fotos de parentes, de momentos marcantes e de cenas hilárias. Por exemplo, vira a tela com a foto de um jovem garoto de camiseta, bermuda e tênis, todos brancos, comprados no mesmo dia que recebeu – e torrou – R$ 700, um dos primeiros salários. Sem arrependimento.

Ah, para a família e os amigos, não existe Richarlison. Ali, ele é o Charlinho.


De Nova Venécia para o mundo

O capixaba de 26 anos mudou de vida na Inglaterra, onde brilha desde 2016. Conheceu Elton John, que já foi dono do Watford, seu primeiro clube no país. É ídolo do Everton, voltou a fazer gols no Tottenham. Camisa 9 da seleção na última Copa. Famoso, ou melhor, "um pouco conhecido", como ele mesmo disse.

Mas a pureza é daquele Charlinho, o moleque que "já passou muito perrengue e um pouquinho de fome" em sua terra-natal, Nova Venécia. "A favela ensina a viver, a dar valor às coisas. Mesmo com poucas coisas a gente sorri, a gente é feliz, a gente busca uma melhor solução para uma vida melhor."

E pensar que, na adolescência, ele não caiu na tentação das drogas para uma vida mais "fácil". Fechou os olhos de medo ao ter uma arma apontada para a cabeça após ser confundido com um "concorrente", quase um "game over", como ele mesmo disse.

Mas tudo tinha de ser diferente. O pai, Antônio, foi e é o grande incentivador da carreira e fez Charlinho seguir no destino de mudar a vida com a bola nos pés. "Agradeço ao meu pai, que sempre acreditou em mim e nunca desistiu do meu sonho, por que eu realizando o meu sonho eu poderia ajudar muitas pessoas". Também foi do pai que ele herdou a paixão pelo Vasco.

Richarlison é um cara diferente, raro, único.


Um desabafo de coração aberto

Bastam alguns segundos para perceber que Richarlison é sempre o mesmo, seja em campo, nas entrevistas, nas redes sociais, até em casa com uma equipe de TV, luzes e câmeras ligadas.

As palavras sempre vêm do coração. Os gestos são generosos. A preocupação com o próximo e com a preservação do Pantanal movem atos e incentivos. Isso explica por que é ídolo de crianças e adolescentes ao redor do planeta. Afinal, quantas vezes você viu uma leva de fãs imitando a "Dança do Pombo"?

Charlinho conquistou o mundo.

Se fosse um conto de fadas, esse texto acabaria assim. O jeito de falar é engraçado e parece que você vai rir a qualquer momento. Mas mesmo uma pessoa com essa aura não está protegida... E a vida, implacável, derrubou Richarlison.

O camisa 9 chegou à Copa do Mundo de 2022 se recuperando de lesão. Na estreia desenhou aquele voleio inesquecível, eleito pela Fifa o gol mais bonito do Mundial. Foram mais dois gols na competição – outro contra a Sérvia e o último diante da Coreia do Sul. Mas a eliminação para os croatas mudou tudo.

Deixou o Qatar profundamente triste, afinal, além de vestir a camisa, Richarlison é torcedor fanático da seleção. Nas traiçoeiras redes sociais, os que idolatravam o então "herói" se tornaram críticos ferozes, desmedidos, por vezes até criminosos.

Logo depois veio a decepção, a traição, justamente de quem morava há mais de sete anos em sua casa.

Foi demais para ele. Muita coisa ao mesmo tempo. Lembre-se, o Pombo é Gente. E foi ali, no calor de seu ninho, bem à nossa frente, que ele abriu o coração como jamais havia feito.

Abaixo a íntegra do depoimento emocionante e dilacerador de um ser humano que se viu prestes a desistir de tudo:

"Antes eu ia treinar assim, tipo, já queria voltar para casa, queria voltar para o quarto porque sei lá, não sei o que estava dando na minha cabeça... Cheguei a falar com o meu pai que eu ia desistir. Cheguei a ir falar com o meu pai que eu ia desistir.

Dá até, tipo, tristeza assim de falar assim, sabe? Por que... Sei lá, foi... Só eu, assim, sabe... O que eu passei depois da Copa do Mundo e descobrindo coisas aqui dentro em casa de pessoas que conviveu comigo mais de sete anos... Tipo, é loucura...

E chegar para o meu pai, que foi o cara que correu atrás do meu sonho, assim, e falar que, pô, pai, quero desistir, é coisa de louco.

Tinha acabado de disputar uma Copa do Mundo, pô, no meu auge... E estava chegando assim, tipo, no meu limite mesmo, sabe... De sei lá, não vou falar se matar, mas, tipo, eu estava numa depressão ali, tipo, sei lá, e estava querendo desistir... Sei lá...

Estava sofrendo muito ataque depois da Copa e junto com esse problema pessoal dentro de casa afetou muito, afetou, tipo... Logo eu, tipo, parecia que era forte mentalmente, sabe? Depois da Copa do Mundo parece que desabou tudo.

E eu falo, dei a entrevista recente aí... Acho que a psicóloga, querendo ou não, salvou, me salvou, salvou minha vida por que... Eu só pensava besteira... No Google mesmo eu só pesquisava besteira, só queria ver besteira de morte, sei lá...

Hoje eu posso falar, procure um psicólogo, você que está precisando de um psicólogo, procure porque é legal você se abrir assim, você estar conversando com a pessoa. Hoje a professora veio me agradecer por estar levando isso para o mundo do futebol, para o mundo extracampo também, porque é muito importante e, querendo ou não, salva vidas.

Eu tinha esse preconceito antes, eu falei na entrevista que eu tinha esse preconceito. Achava que era frescura, achava que eu estava doido. Da minha família mesmo tem pessoas que acham que quem vai para o psicólogo acha que é louco, acha que é doido. Mas eu descobri isso e achei maravilhoso. A coisa melhor, a melhor descoberta que eu tive na minha vida mesmo."


Richarlison é, realmente, um cara diferente, raro, único. Seu depoimento é mais uma lição de vida e de renascimento de um jogador que, não por acaso, é ídolo de milhões de crianças no Brasil e no mundo.

Obrigado por tudo, Richarlison. Por sua generosidade, por abrir a porta de sua casa e de seu coração, pela lição de vida, pela sua voz, por tudo que você é e representa. Obrigado por ajudar a todos, mais uma vez. O Pombo, acima de tudo, é Gente.


Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida), serviço voluntário gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.

O CVV oferece atendimento pelo site www.cvv.org.br, pelo telefone 188 (24 horas e sem custo de ligação), por chat, e-mail e também pessoalmente.

Também busque apoio nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e nas UBS (Unidades Básicas de Saúde) de sua cidade. São serviços gratuitos de atendimento às necessidades de saúde mental de qualquer pessoa. Mais informações no Disque Saúde, pelo telefone 136.